Húmus Poema Contínuo

[a partir de textos de Herberto Helder e Raul Brandão]


Húmus - poema montagem parte do Húmus de Herberto Helder (baseado em "
palavras, frases, fragmentos, imagens, metáforas do Húmus de Raul Brandão”) para criar um poema combinatório re-alimentado pelo léxico de Brandão. A regra combinatória a que foi submetido inscreve-se no âmbito de “liberdades, liberdade”, como no texto de Helder. O leitor pode despoletar a combinatória interagindo com determinadas palavras, além de ter a possibilidade de alterar as listas lexicais. A textura sonora é gerada dinamicamente.

Húmus de Raul Brandão

Húmus, de Raul Brandão (1867 Foz do Douro - 1930 Lisboa) foi escrito durante a primeira Grande Guerra (1914-1918) e publicado pela primeira vez no ano da Revolução Russa (1917). Considerada por muitos críticos como a sua obra-prima, ao ponto de várias vezes se referirem a Raul Brandão como “o autor de Húmus”, esta obra tem originado as mais variadas leituras por parte da crítica literária, que ora a enquadra no Simbolismo, ora lhe enfatiza os elementos do grotesco emocional, considerando-a um raro exemplo do Expressionismo português. Interessa salientar um certo “carácter de antecipação” (Vasconcelos 14) desta obra, porque é a sua presença enquanto legado vivo que parece justificar a admiração que ainda desperta em tantos escritores portugueses, nomeadamente Agustina Bessa-Luís, Almeida Faria, Vergílio Ferreira, e Herberto Helder. Jacinto do Prado Coelho chega a dizer, em 1967 – data da publicação do poema de Herberto Helder -, que “agora, a cinquenta anos de distância, é que o Húmus parece duma actualidade mais viva e mais admirável” (A Letra e o Leitor 327).

Raul Brandão é um escritor que frequentemente re-escreve a sua própria obra. A re-elaboração e transformação da escrita do Húmus de Raul Brandão foi estudada por Maria João Reynaud em Metamorfoses da Escrita, vendo a autora nas três versões do Húmus “a possibilidade inerente de uma contínua metamorfose” (96). Reynaud começa por lembrar que é sob o “signo do desastre” que a obra de Raul Brandão se edifica, apontando depois a abolição da oposição entre prosa e poesia e a desvalorização dos elementos convencionais da narrativa como técnicas que reflectem a renúncia do autor a uma certa “felicidade da escrita” (9). É esta recusa das convenções literárias e a consciência de escrita enquanto algo nunca finalizado que definitivamente arrancam Raul Brandão às práticas textuais correntes da altura em que escrevia. A existência de três versões do Húmus coloca-nos, segundo a autora, “perante um processo descontínuo de enunciação escrita de grande complexidade, em que cada uma delas se apresenta como uma variação da mesma obra, como um testemunho da mobilidade da escrita, que alimenta a utopia do Livro total.” (45) Regido por um princípio de indeterminação perfeitamente moderno, Raul Brandão encenou na sua obra um processo de “destruição-reconstrução (de reescrita), praticado no decurso da releitura, que reactiva um projecto de conjunto e determina as metamorfoses do objecto estético” (92). Esta metamorfose continua no texto de Helder, e é este projecto de uma obra sempre por acabar o que legitima o poema de Helder, a sua “liberdade” de o recuperar, re-fazendo-o.

A instabilidade textual do Húmus diz respeito às metamorfoses da escrita referidas por Maria João Reynaud, e ela corresponde, no texto, a uma fragmentação narrativa. É devido a esta instabilidade narrativa que vários leitores de Raul Brandão têm interpretado o processo de escrita do Húmus como uma “desfocagem permanente” (Vasconcelos 7), situada no âmbito da “ressonância” (Seixo 48). Maria Alzira Seixo lembra por exemplo que em Húmus “não se narra, não se conta; descreve-se, medita-se, discorre-se” (46).

Como o próprio título parece indicar, o Húmus encena a transformação: composto de detritos vegetais e animais, o húmus é a parte fértil da terra, onde se entranham e confundem a morte e a vida, “todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida” (Brandão 27), como o próprio autor a dada altura do texto nos informa.

O mote a ser desenvolvido durante toda a “deambulação metafísica” é apresentado nas primeiras linhas do texto: “Ouço sempre o mesmo ruído de morte, que devagar rói e persiste...” (Brandão 17), para só a seguir se estabelecer o cenário em que se vai desenvolver a acção (ou a ausência da acção): "Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures." (Brandão 17)

Daqui se apreende que a vila se situa num espaço de negatividade, simbolicamente associada à morte, representando uma paisagem que, como referiu Jacinto do Prado Coelho, é “subjectiva, onírica, feita de papel glacial, mesquinhez e tragédia” (“Da vivência do tempo em Raul Brandão” 221). Porque a vila é um espaço ficcional que não representa, mas que se representa.

Habitada por seres recalcados, sem história nem passado, de que apenas se entrevêm características associadas à banalidade do seu quotidiano, “a vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro” (Brandão 26). A vila é, assim, uma estrutura simbólica da vida, e parece debater-se, como lembra António Quadros, "entre dois imaginários contrapolares e opostos: um imaginário traduzido em tédio, vulgaridade e insignificância -, e um outro imaginário recalcado, afundado, diminuído que dir-se-ia remeter para uma vida mais autêntica, para a verdadeira vida." (65)

E se, como diz Brandão, “atrás desta vila há outra vila maior” (26), o mesmo seria dizer que atrás desta vida de aparências há uma outra vida, a autêntica, que insiste em se ocultar. O próprio texto evolui nessa direcção: "Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície. Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num invólucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar." (Brandão 17)

Estes seres que habitam a vila são fantasmas que, dotados de uma segunda vida, criam, com o tempo, uma rede de hábitos, insignificâncias e ninharias, aspectos dum supérfluo imediatismo que os arranca à contemplação da vida. Daí que “todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância.... Tapá-la, escondê-la, esquecê-la” (Brandão 18). Esta permanente oposição entre a vida aparente e a verdadeira serve, por outro lado, para sugerir o ser humano como composto de sucessivas camadas de subjectividade: “Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido” (Brandão 47); a descoberta de que “O homem por dentro é desconforme” (Brandão 65), por outro lado, conduz à constatação de que entre um lado e o outro “Interpõe-se um muro” (Brandão 69).

As personagens que preenchem este espaço ficcional são elas próprias um produto da narrativa, e, tal como a vila, não representam ninguém. Elas estão desprovidas de consistência psicológica, levando o leitor a suspeitar do seu grau de verosimilhança. “Despidas de individualidade” (Seixo 46), elas parecem representar nada mais que a própria representação. Este nível de auto-consciência narrativa confronta o leitor com um desfile de caricaturas grotescas, de nomes absurdos, onde o jogo de palavras se evidencia. Fazem parte desse conjunto de fantasmas – e atente-se à ironia dos seus nomes – um Santo; as Teles que “odeiam as Sousas”; as Fonsecas que “passam a vida a fazer cortesias”; as Albergarias que “só têm um fim na existência: estrear todos os semestres um vestido no jardim”; a D. Engrácia; a D. Biblioteca, “sempre a primeira em todas as listas de esmolas”, e seus dois filhos, “o respeitável Elias de Melo, e o impoluto Melias de Melo”, que “deixa morrer a mãe à fome e todos os anos dá contos de réis aos asilos” (24). A D. Restituta, “sempre a acenar que sim à vida”; a D. Procópia “a abrir a boca com sono”; a D. Felizarda; a D. Hermengarda; a D. Penarícia (19); o Félix procurador; e uma velha criada, que “Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas”: a Joana (20).

Neste ambiente grotesco, de estagnação e imobilidade, a vila confronta-se com a possibilidade de mudança. Porque esta vila, embora “tumular e encardida”, “oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme” (34). Esse sonho é não morrer, é a imortalidade (37). E esse sonho é também o inconformismo dum homem - o Gabiru, “singular filósofo”, alter ego de Raul Brandão – que introduz nesse espaço inerte a transformação.

É o sonho que vai cumprir a função de activar a oposição entre o quotidiano-máscara e algo que cresce por dentro e que corresponde a uma outra dimensão da vida. E o Gabiru vai dizendo: “- É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos” (Brandão 31). No sonho aglutinam-se as forças incontidas que agitam morte e vida, e que, assim, re-ligam os mortos e os vivos: "Aqui não andam só os vivos – andam também os mortos. A vila é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça, e pelos outros que se impõem como se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido." (Brandão 27)

Este universo em que tudo se liga e se encontra unido, encontra na árvore a sua melhor concretização simbólica, pois ela estabelece a união da terra e do céu, restituindo assim uma unidade originária perdida. Como nos lembra Jean Chevalier no seu Dictionary of Symbols, a árvore exprime o universo em perpétua regeneração, simbolizando “the cyclical character of cosmic development in death and regeneration” (1026). A árvore aparece no Húmus como ligação entre todos os níveis do cosmos: através das suas raízes ela liga o mundo subterrâneo ao mundo superficial do solo, que, por sua vez, e através dos ramos, se vão ligar ao céu.

Por isso me parece legítimo afirmar, com José Manuel de Vasconcelos, que “o sonho tem as suas raízes nos mortos”, pois são eles que alimentam as profundas raízes da árvore dos vivos, seu “húmus essencial” (9). E neste sentido se poderá compreender a sur-realidade que se instala com a ideia de que “somos um reflexo dos mortos”, ou, duma forma mais radical ainda, a fala interior do autor, quando diz: “sou os mortos”.

Convém no entanto esclarecer que a morte, como apontou Vergílio Ferreira, “não surge em Raul Brandão como um motivo “mórbido” da sua meditação, como no existencialismo, aliás, em que se há mortos não há rigorosamente cadáveres: ela ergue-se apenas como motivo contrastante para uma reflexão sobre a vida.” (256) Neste sentido, a morte é a possibilidade de encarar de uma forma dinâmica a vida, na medida em que é ela que revela o seu ideal de autenticidade. Jean Chevalier: “death is endowed with powers of regeneration”, pois é ela que “opens the gates to the realm of the spirit, true life: mors janua vitae (Death is the Gate of Life)” (278). Se o medo da morte é o medo de reconhecer que a vida foi vivida em vão, a sua anulação – alquimia bem evidente no projecto do Gabiru, e estranhamente esquecida pela crítica – significa a possibilidade de se recomeçar. A morte é, portanto, a possibilidade de regeneração.

Outro dos temas explorados por Raul Brandão é o do trabalho do silêncio, que em Raul Brandão parece estar associado à ineficácia e à impotência comunicativa: “O silêncio... O pior de tudo é o silêncio, e o que se cria no silêncio, o que eu sinto que remexe no silêncio...” (38).

O agente de toda a imobilidade, como de toda a transformação, é o tempo. Porque o tempo refere a própria impossibilidade do tempo: “E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos” (Brandão 22). O tempo não é um agente ordenador, mas simbólico; ao assinalar-se a suspensão do tempo cronológico, é a própria fronteira entre a vida e a morte que se elimina. Instala-se assim uma espécie de carnivalização, ou inversão de valores, onde “Os mortos empurram os vivos” (Brandão 42), onde os planos da realidade se interpõem: “Tudo o que estava num plano principal passou para um plano secundário” (Brandão 119), assim como “o que estava por baixo está agora por cima” (Brandão 180, 2ª ed).

Entretanto o sonho vai tomando conta de tudo: “Pouco a pouco o sonho dissolve, a nódoa de ouro alastra... Transforma, volta a existência do avesso, deita o muro abaixo” (44). Mas o sonho é descida aos infernos; como lembra Almeida Faria, “Deus está do lado da rotina enquanto o Diabo se encontra do lado do sonho” (141).

O Húmus termina com um grito de revolta contra a imobilidade, contra a tradição que se impõe autoritária, reaccionária, e a favor da revolta da criatividade, do novo: “Ouves o grito? Ouve-lo?... – É preciso matar segunda vez os mortos” (181).

Outras palavras-chave que trespassam obsessivamente o Húmus: a pedra e todo o elemento mineral, o ouro e as suas propriedades alquímicas, a água com suas capacidades purificadoras, a primavera e a regeneração que traz consigo, mas também o grotesco, o desespero, e a dor.

Outra das lições do Húmus é a reflexão que propõe em relação ao problema da esfera criadora da linguagem. Uma vez que a consciência só se torna realidade quando materializada em signos, Brandão coloca o problema da imobilidade social a par do do desgaste da linguagem, como se depreende desta constatação: “Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos....” (21).

Por isso a ambivalência do signo linguístico é metaforicamente exposta, nas figuras que aparecem por trás doutras figuras: “Há momentos em que deparamos com outra figura maior, que nos mete medo” (Brandão 25). Porque “Atrás das palavras.... sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas” (Brandão 28).

Raul Brandão tinha consciência que “Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos.... São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem” (24). Como nota Vitor Viçoso, no Húmus “é abordada com nitidez a relação de implicação entre um universo ideológico e a linguagem que a suporta” (20), e se “toda a arquitectura ideológica está em ruínas, para que se opere uma mudança nos valores da sociedade é necessário reinventar as palavras, depurá-las das marcas do passado, achar nelas a sua outra dimensão.” (Viçoso 21)

Rui Torres 1998-2008

Bibliografia

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Húmus de Herberto Helder

Também Herberto Helder (1930 Funchal) é um escritor que re-escreve a sua própria obra. As metamorfoses na sua obra foram analisadas por Maria de Fátima Marinho no seu artigo “Herberto Helder: para uma estética de modificação”, indicando a autora as alterações que o poeta operou nos seus poemas na altura da re-edição da sua obra em Ofício Cantante e Poesia Toda, bem como nas sucessivas re-edições de Os Passos em Volta. Maria de Fátima Marinho começa por lembrar que “Herberto Helder é quase incapaz de reeditar uma obra sua sem a reler – sem a transformar” (25). São posteriormente analisadas as transformações que Helder opera nos seus textos, chegando Marinho à conclusão de que as mais correntes alterações dizem respeito à supressão de redundâncias, de sinais enfáticos, de ah e oh exclamativos, bem como à eliminação de “elementos que contribuem para uma intensificação que redunda em repetição: pronome possessivo adjunto, pronome pessoal sujeito, artigo definido antes do possessivo, duplicação do mesmo adjectivo ou substantivo” (25). A mudança de posição de adjectivos e advérbios, a substituição do artigo indefinido pelo definido, a passagem do pronome reflexo de terceira pessoa para o de primeira pessoa, a alteração de adjectivos, substantivos, e verbos por outros menos banais guiam a preocupação do poeta, sendo que a estes elementos estilísticos se juntam outros de cariz mais formal, tais como certas mudanças na divisão de versos e estrofes. Uma vez que a autora não refere as transformações que Helder fez no Húmus, serão aqui identificadas por mim na análise do poema. Em entrevista dada a Eduardo Prado Coelho a 4 de Dezembro de 1990, nos diz o poeta: “ler um poema é poder fazê-lo, refazê-lo”.

Herberto Helder desenvolveu também, principalmente na década de 60, um conjunto de exercícios intertextuais. O primeiro poema onde é explícita a citação é o “ ‘Transforma-se o amador na coisa amada’, com seu”, publicado em A colher na boca (1961). Aí Herberto Helder faz uma leitura de Camões que se situa no âmbito da transgressão, pois o código do amor idealizado, que normalmente se lê no soneto de Camões, é, no poema de Helder, erotizado. Este tipo de acção pode ser interpretada como subversiva, uma vez que lê o passado como um sistema de imposições, propondo com isso uma redefinição do próprio presente.

Em Electronicolírica (1964), Herberto Helder faz uso do processo combinatório. O posfácio da primeira edição desse livro poderia, de certa forma, servir de prefácio ao Húmus. Referindo-se a uma experiência com uma calculadora electrónica que Nanni Balestrini levou a cabo em Milão em 1961, processando, segundo certas regras combinatórias previamente estabelecidas, textos antigos e modernos, de que resultaram 3002 combinações, Helder explica que a mesma atitude é levada a cabo no seu livro, através dum processo de transferência, sem porém se “cingir a qualquer regra” (Electronicolírica 49). Daí resultou, de acordo com o poeta, uma semelhança com “certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo lirismo medieval” (50), criando assim uma peculiar “fórmula ritual mágica, de que o refrão popular é um vestígio e de que é vestígio também o paralelismo medieval, exemplificável com as cantigas dos cancioneiros” (50). Helder acaba por concluir que “O princípio combinatório é, na verdade, a base linguística da criação poética” (50).

É o próprio Herberto Helder quem melhor explica este tipo de trans-textualidades. Num texto que serviu de prefácio ao primeiro caderno antológico da Poesia Experimental (1966), diz Helder que “Existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose” (5). Atente-se entretanto à preocupação de Helder com o que diz respeito à tradição.

No posfácio a O corpo o luxo a obra, começando por lembrar que “o ouro natural é vivo”, Helder retoma a sua temática favorita, a de que “A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo.... Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa”.

Esse trabalho de transformação é o que vai ser levado a cabo no Húmus: metamorfose de sentidos, expansão de significações, texto inscrito noutro texto. É neste sentido que o texto de Helder pode ser interpretado: como caminho para o renascimento do texto de Raul Brandão. Como refere Maria Lúcia Dal Farra, o texto de Brandão é disposto “como um universo submerso cujos apelos de restituição e redescobrimento fossem dados pela energia ainda combustiva das palavras escritas, proferidas e afogadas no tempo” (A Alquimia da Linguagem 200). Se a escrita se guia pelo princípio da regeneração, ela está inevitavelmente associada a uma morte: “A morte vem a ser uma resposta adequada ao impulso para a regeneração” (Diogo 40).

Também Helder faz uso, na sua poesia anterior ao Húmus, de símbolos tais como a água, a pedra, o ouro, a morte e os mortos, a primavera, a árvore, o silêncio, a ressurreição, o tempo, e o sonho.

O silêncio vem na poesia de Herberto Helder com uma dupla intenção de morte e renascimento, e é um componente activo e activador da linguagem. A morte, por seu lado, é passagem para um outro estado, é ressurreição. Também a primavera, símbolo da fecundação, traz consigo a imagem primordial da transformação. O amor é o trabalho dessa transmutação: o amor pelo texto, o amor-leitura do mundo.

No seu primeiro livro de poesia, O Amor em Visita (1958), Helder liga estes símbolos: “Correm em mim os mortos, como água” (Poesia Toda 56). O corpo do poeta é o poema, e este é atravessado pela tradição, pelo passado de que regressa. Como no Húmus de Brandão, em Helder os mortos “Ajudam os vivos. / São doces equivalências, luzes, ideias puras”, e por isso “a morte é como romper uma palavra e passar / através da porta, para uma nova palavra” (Poesia Toda 58). Em relação à árvore, Maria Estela Guedes nota que o universo da poesia helderiana tem estrutura arborescente porque "o poeta observa as árvores dos campos e nelas encontra o melhor exemplo da regeneração cíclica, e da complexidade do todo na coisa única: a árvore concreta é um corpo orgânico que participa da morte e da vida, toca o céu e a terra, alimenta e se alimenta." (Poeta Obscuro 27)

O princípio da libertação é o da palavra, e Helder compreende que a metamorfose deriva do dinamismo vital do sujeito. Estar vivo significa estar em transformação constante, e transformar-se é re-escrever-se. E no Húmus se mistura passado e presente, tradição e inovação, silêncio e vida.

A primeira edição do Húmus tem como sub-título a sugestiva nomeação de “Poema-Montagem”. Montagem, termo emprestado da linguagem cinematográfica, diz respeito ao trabalho de “concatenação dos vários planos de um filme, de acordo com particulares intuitos de organização sintáctica” (Reis 240). Helder reflecte sobre a montagem num texto publicado na primeira edição de Cobra (“Memória. Montagem”), começando por colocar a questão da própria matéria de que se compõe o poema, negando a mimesis enquanto único processo criador da arte. Para Helder, “os elementos com que o poema se organiza não estão na natureza”, porque “o poeta não transcreve o mundo, mas é o rival do mundo” (9). Helder define a montagem como “uma noção narrativa própria” (10) de cada autor, a “cuidada maneira de receber a memória, assitir à ressurreição do que foi morrendo, e morre, e vai morrer” (11).

Assim também a recepção/leitura de Brandão, que ressuscita um texto com cinquenta anos, montando-o segundo a sua noção narrativa, isto é, lendo-o. O resultado deste processo de montagem reflecte-se na transgressão da linearidade do discurso. No poema, ao contrário do discurso quotidiano, “os substantivos não são palavras, mas objectos distribuídos; e os adjectivos, por exemplo: as qualidades e circunstâncias da colocação dos objectos no espaço” (13). O poema é, assim, ao contrário do romance, um corpo com autonomia própria. É por isso que o que primeiro chama a atenção no Húmus de Helder é a visualidade do texto. Como que aludindo ao processo de “corte e cose” que o texto-base de Brandão sofreu, os versos começam no espaço deixado em branco pelo verso imediatamente anterior, sugerindo assim uma decomposição do próprio acto de leitura feito por Helder.

A montagem é, portanto, o processo principal pelo qual o poema de Helder estabelece e concretiza a leitura do texto de Brandão. Montagem seria, assim, a ligação das partes num todo com autonomia própria, o poema.

Há três epígrafes que interessa referir. A primeira parece colocar de lado a utilização irónica, ou paródica, do texto de Brandão. Trata-se de uma dedicação: “À memória de Raul Brandão”. Logo a seguir, Helder explica o processo que vai seguir, eliminando problemas que possam surgir em relação ao plágio, uma vez que o texto citado é explicitamente referido. Helder explica que o “material” que vai ser usado é composto por “palavras, frases, fragmentos, imagens, metáforas do Húmus de Raul Brandão”, sendo que a regra por que o poeta se rege é a de “liberdades, liberdade”. Finalmente, Helder inclui um provérbio sessouto, “A morte é sempre uma coisa nova”.

Rui Torres 1998-2008

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